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A Cava de Guedes ( Luciana Oliveira e Adair Maia) - Entre livros e travessuras.

A Cava de Guedes.



  Esta história extraordinária e familiar que vamos contar se passou na década de 40, entre o ano de 1942 e 1943, onde nem de longe se imaginava a instalação da luz elétrica, em um lugarejo chamado Campestre, distante seis léguas de Crucilândia. O que se via naquele pequeno povoado, cravado nas montanhas que circundam Bonfim, ao anoitecer, era pequenas luzes que se movimentavam conforme a necessidade das pessoas, originadas de candeeiros que tinha a função de iluminar casas, fazendas e currais daquela época. O tropeiro Juvenato Cordeiro possuía umas terras ali, nos arredores do povoado; eram boas de planta e cria. Ele plantava cana, aguando com água do açude, tinha engenho de rapadura, de gado não sabia a conta, pegava mais de cinquenta bezerros por ano no curral. Fora o que amontoava no mato. Conquistar tudo aquilo foi duro e devagar para ele, mas agora Juvenato podia olhar o mundo ao redor: lá embaixo na várzea, lá em cima na serra e, para os dois lados, as perambeiras do pé do morro. Tudo seu. Avistou ao longe seu cavalo Navio pastando, respirou orgulhoso soltando a fumaça do cigarro de palha. A casa era grande, com madeiras pintadas de azul, paredes de cal branco. Juvenato mandou erguer dois quartos, um para os filhos homens e outro para as filhas mulheres, com vastas janelas de madeiras. Na sala de assoalho bruto, havia duras cadeiras compostas por uma mesa imensa que sustentava um velho rádio, que exigia seis grandes pilhas. Nas noites frias, a família imensa se esparramava no restante do cômodo, lá havia dois bancos cumpridos ideais para infindáveis conversas sobre as aventuras contadas pelo pai. Todos ali sabiam que Juvenato não abria mão de estar à frente de seus  negócios, vivia mais tempo fora de casa, com seus companheiros, do que com a família. Mas os filhos não se queixavam, pois, no pouco tempo que ficavam juntos, aprendiam lições para uma vida toda. Aquela noite não seria diferente, ele já havia acendido seu cigarro de palha, as filhas Emília e Deja sentaram-se a seus pés, os filhos dividiram-se entre os bancos e a soleira da porta, e escutavam atentamente. Ele começou: — Era um fim de tarde, eu cheguei de viagem cansado, a mãe de vocês, Leonidia, estava de péssimo humor, acredito que estava brava com minha demora na viagem, e por isso me recebeu com reclamações. Os filhos olharam para a mãe. Ela franziu a testa. O pai, após dar um sorriso brando, prosseguiu: — “Juvenato, você esquece que tem família? Se preocupa em vender as coisas que produz aqui na fazenda e trazer dinheiro para casa, mas não comemos dinheiro!”, disse ela soltando fogo pelas ventas. “Calma, Mulher!”, eu tentava acalmar a fera. “Calma? Eu preciso de sal, de querosene, de farinha...”, ela gritava. Percebi que não ia adiantar, ela estava irredutível, me queria perto, mas meu castigo seria sair de novo — falou, dando uma piscada para a mulher que o olhava com uma cara de brava. — Sem discutir, aproveitando que eu ainda estava com as tralhas e com o cavalo arriado, montei e sai em direção a Rua. A Rua, meus filhos, na verdade era a cidadezinha de Crucilândia. Assim a chamávamos antes. Eu estava cansado, Navio meu cavalo também, mas não podia contrariar a mãe de vocês. Para demonstrar certa frustração, saí a galope. Ao chegar à Rua, o dia já estava terminando, eram meados de junho onde os dias são menores e as noites muito escuras. Cumprimentei meu amigo caixeiro: — Boa noite, Lilico. — Boa noite, seu Juvenato. — Preciso de sal, de querosene e de farinha. Mas me atenda rápido, pois daqui volto eu, Deus e Navio porque estou com pressa e cansado — disse, tirando meu chapéu de palha. — Juvenato, ficou sabendo da morte de Manoel Dias? MMorreu faz três dias. — Não fiquei, Lilico. Homem bom aquele, gostava dele. Me arrume uma rodada de pinga para que eu e meus companheiros aqui bebamos a morte dele, já que ele não pode beber mais — falei, dando uma risada. Lilico me atendeu prontamente, serviu primeiro a aguardente que chamou de especial, brindamos e viramos a pinga que desceu ardendo minhas goelas abaixo. Mas vocês podem imaginar que quando encontramos com amigos, conversa vai, conversa vem, uma rodada de pinga aqui, outra ali, e o tempo foi passando. Quando dei por mim, já estava bem escuro. Guardei o que podia no alforje, montei Navio e saí em direção a Campestre. Na saída de Crucilândia tem um riacho, vocês bem sabem, chamado Riacho das Águas Claras, que é o nosso caminho, na entrada do povoado dos Maias. Durante o percurso, eu escutava a água batendo nas pedras do leito do riacho, escutava também a coruja, ela parecia me observar, virava a cabeça 360 graus me acompanhando passo a passo. Navio assustou-se com um voo desengonçado de um curiango. Os urutaus paralisados nas pontas de estacas com seus voos rasantes despertava certo arrepio. Eu comecei a me arrepiar em cima de Navio, uma sensação estranha, como nunca senti antes, tentei levar aqueles pensamentos para longe de mim, devia ser o cansaço da viagem, afinal eu conhecia aquele cenário como a palma da minha mão. Mas Navio estava arredio, ele demonstrava sinais de cansaço. Decidi ir pelo atalho, lá pelas bandas do Guedes, ao invés de pegar uma subida íngreme pelo povoado dos Maias. Quando estava a mais de duas léguas, meus pensamentos começaram a me trair, surgiu em mim uma grande preocupação com a Cava dos Guedes. A estrada é peculiar, muitas árvores, um aclive acentuado, barrancos com mais de dez metros dos lados e no meio deles um riachinho, eles o chamam de Riacho da Morte, com pouca água, que da até para atravessar a pé. Havia uma história antiga que ali acontecia coisas misteriosas. Meus antepassados me contavam que não era lugar para se passar depois do entardecer, pessoas juravam ter ouvido gritos, assobios, outras juravam ter visto assombrações, diziam até que ali era mal assombrado. Eu nunca acreditei naquilo, passei ali várias vezes, claro que sempre coincidiu que era dia, mas achava aquilo tudo uma bobagem. Ao chegar bem no início, na entrada da cava, Navio refugou, como se me alertasse que alguma coisa estava errada naquela noite. Estava muito escuro, ouvi um assobio alto e ensurdecedor, que aumentava à medida que os passos do cavalo iam em direção a cava. Algo estava diferente naquela noite, o cavalo arrastava as patas na terra solta, com se estivesse sendo empurrado para dentro. Pensei em voltar ou descer do Navio, mas ele já estava bufando, saindo de lado, arrastando as patas. Achei por bem ficar junto dele. Cavalguei um pouco mais, os pelos do meu corpo arrepiados, Navio já estava atravessando o pequeno riacho quando o pior aconteceu. Do nada, um peso sobrenatural forçou a garupa do cavalo, como se tivesse outra pessoa montada ali, fazendo com que ele fizesse uma força descomunal para seguir adiante e pegar a subida para sair daquele lugar. Navio nunca fez tanta força para romper com o peso que trazia. Naquele momento, olhei para trás e não vi nada, então senti um gelo em minhas costas e alguém segurou no arreio. Eu gritei: — Valei-me, Nossa Senhora! — Só me restou rezar, pedir proteção e esperar Navio sair daquela situação. O cavalo não obedeceu mais o meu comando, fugia comigo agarrado nele. O assobio cessou e naquele momento, eu não escutava mais nada a não ser o respirar ofegante do Navio, que por causa do peso já quase se arrastava pelo caminho. Aquilo durou mais uns minutos, eu perdi meu chapéu, porque as mãos somente se preocuparam em segurar o arreio. Entreguei-me a própria sorte, confiei no meu cavalo, ele conhecia o caminho, e confiei na proteção divina. Fechei os meus olhos e rezei. Nunca rezei tanto em minha vida. Só fui ver que estava na porteira de casa quando o Navio parou, aquele peso diminuiu, eu não olhei para trás, desci rapidamente, soltei o cavalo no curral, entrei em casa branco que nem uma vela, e se precisasse falar alguma coisa, acho que não conseguiria. A mãe de vocês já dormia. Não quis acordá-la. Passei a mão no terço e comecei a rezar. Com o cansaço, adormeci. Acordei cedo no outro dia, fui ver como estava o Navio. Vossa mãe se aproximou de mim. — Juvenato, o que houve ontem? Por que demorou tanto na rua? Onde Manoel Dias dormiu? Eu o vi chegar em sua garupa e não o vi hoje pela casa. Meu coração disparou. Minha cabeça rodou e vossa mãe me amparou para que eu não caísse. Expliquei a ela tudo o que aconteceu. Contei que Manoel Dias estava morto já havia dias e ela me disse com a maior calma do mundo: — Desta vez foi Manoel Dias, da próxima pode ser outra coisa, melhor não passar mais na Cava dos Guedes! Mulheres... Vai entender!

Luciana Oliveira


      Luciana Oliveira nasceu em Itaúna/MG, onde cursou Ciências Contábeis. Hoje atua como contadora professora de faculdade, autora pela Editora Fragmentos com o romance publicado em 2016, “Homens e Anjos”, e ainda atua na literatura infantil em coautoria com crianças de até 12 anos.


                                                         Adair Maia




     Adair Maia nasceu em Itaúna-MG, formado em Direito pela Universidade de Itaúna. Atua no direito previdenciário. Trabalha também no setor de controladoria de uma multinacional do ramo de autopeças. Orgulha-se de ter Gerenciado por longos anos as áreas de RH e Contabilidade de empresas do ramo siderúrgico.Nas horas vagas escreve contos e histórias.



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