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Bela justiça ( Soraya Abuchaim) - Entre livros e travessuras.

                                            Bela justiça




Nina estava sentada em sua cama, olhando para a parede, hipnotizada. Não havia espelhos em seu quarto, ela não suportaria ter que se mirar e, todas as vezes, chorar pelo que havia se transformado. A casa possuía apenas o espelho do banheiro, que ela mantinha coberto por um pano preto quando não havia visitas - que eram raras. O dia 31 de outubro estava se aproximando, e era a única época do ano em que ela podia sair às ruas mascarada sem sentir-se julgada, examinada, fazendo parte de uma festividade, como se sua vida não fosse um velório contínuo. Antonina Braga estava com vinte e oito anos e tinha o rosto desfigurado, fruto de uma briga com seu padrasto, que, no calor do momento, a queimara com ácido. Ela tinha apenas quinze anos e nunca mais voltou à casa da mãe. O trauma e a aparência a fizeram viver reclusa, executando um trabalho monótono atrás da tela de um computador. Só que, após anos tendo uma vida patética, aquele outubro marcaria uma nova era. Nina fora tocada pela Voz de um Ser Maior, o Mal que habita em cada alma, e ela estava disposta a mudar a situação. Ela se levantou da cama e se arrumou com esmero, penteando os cabelos longos e negros atrás de uma máscara de caveira colorida, que nada tinha a ver com a pessoa soturna por trás. Vestiu uma túnica vermelha e colocou o capuz sobre a cabeça. Era a versão delicada de uma mulher despedaçada. Ousou ohar no espelho do banheiro, apenas os olhos negros estavam visíveis. Alívio. Nas ruas, conforme o sol se punha, dando lugar a um céu púrpura sem nuvens, as crianças agitavam-se. Campainhas, gritos e risadas eram audíveis, mas Nina tinha um destino em mente. Ela abriu a porta da casa para a rua enquanto ouvia a Voz que lhe guiava. Era um vozeirão grave, que dizia exatamente o papel de Nina, sua missão, e a recompensa que ela receberia. Por baixo da túnica, em uma abertura falsa, pensada para a ocasião, ela levava a adaga e o bisturi que a ajudariam a obter êxito no seu intento. Não importavam as consequências: depois daquela noite de Halloween, ela seria, literalmente, uma nova mulher. A ansiedade fazia seu coração disparar, enquanto ela caminhava pelas ruas, alheia às pessoas à sua volta, focada apenas em ouvir a Voz que a guiava. Depois da longa caminhada, ela entrou por uma rua pouco iluminada, especialmente escolhida pela Voz. Parou em frente à casa e apertou a campainha. Uma mulher linda e sozinha a recebeu, com uma cesta de doces nas mãos. Nina percebeu que a Voz estava certa: por trás daquela beleza, a mulher possuía uma aura negra. Não merecia os belos traços. Sem falar nada, Nina deu um beijo com sua máscara gelada nos lábios quentes da mulher, surpreendendo-a e a empurrando docemente para dentro da casa. Foi a última vez que a bela dama viu o céu estrelado. *** O dia amanheceu, havia papéis de doces espalhados pelas calçadas, e Nina saiu da casa. Era uma nova mulher. Cobrindo seu rosto, ao invés da caveira, havia uma máscara feita da mais bela mulher que ela pôde encontrar. Ela fizera um exímio trabalho de extração da pele sem danificar os traços, digno de um cirurgião renomado. A Voz a auxiliara mais uma vez. O resto do corpo… bem, não importava para mais nada, fora jogado em uma vala qualquer pelas redondezas. Nina foi presa uma hora depois, fadada a passar o resto dos seus dias atrás das grades. Assassina, homicida… esses foram nomes dados pela população revoltada. Mas Nina só queria voltar a ser bela.

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